o amor!
o amor é uma poderosa emoção que implica uma intensa ligação a um objecto e uma grande valorização desse objecto. Em algumas acepções, contudo, o amor não implica, de todo, emoção, mas somente um interesse activo no bem-estar do objecto. Noutras situações o amor é essencialmente uma relação que implica permutação e reciprocidade, mais propriamente que uma emoção. Além disso, há muitas variedades de amor, incluindo o amor erótico-romântico, o amor da amizade e o amor filantrópico. Culturas diferentes também admitem diferentes tipos de amor. O amor tem, igualmente, uma arqueologia complicada: porque tem fortes conexões com experiências de afecto precoces, pode existir na personalidade a diferentes níveis de profundidade e nitidez, apresentando problemas específicos para o autoconhecimento. É um erro tentar fazer uma descrição excessivamente uniformizada de um tão complexo conjunto de fenómenos.
O amor tem sido entendido por muitos filósofos como fonte de grande riqueza e energia na vida humana. Mas mesmo aqueles que exaltam a sua contribuição têm-no visto como uma potencial ameaça à vida virtuosa. Por esta razão, os filósofos na tradição ocidental têm-se preocupado em apresentar descrições da reforma ou "elevação" do amor, com vista a demonstrar que há formas de conservar a energia e a beleza desta paixão, ao mesmo tempo que se eliminam as suas más consequências.
1. Amor: emoção, relação, acção
Entende-se frequentemente que o amor é uma emoção poderosa. Parece implicar quer uma intensa ligação a um objecto quer uma elevada valorização do objecto. Muitas vezes, embora nem sempre, o objecto é visto como algo de que alguém necessita na sua própria vida; por esta razão, o amor é muitas vezes relacionado com projectos de posse ou incorporação, e com emoções ciumentas para com o objecto visto como independente e capaz de frustrar as necessidades do amante. Espinosa (1677) sustentou que o amor implica ter consciência do objecto enquanto algo que suscita o próprio bem-estar de alguém. Visto que todos os objectos particulares são, também, em virtude da sua separação do eu, capazes de frustrar o bem-estar, todo o amor, concluiu Espinosa, é essencialmente ambivalente, misturado com raiva e mesmo ódio. Pode-se, contudo, defender que o amor é uma emoção ou emoções, enquanto se insiste que estas emoções podem ser isentas de ciúme e desejo possessivo. Assim, Platão, no Fedro, concebe o amor como uma poderosa reacção à beleza e ao mérito, que está estreitamente ligada, nas pessoas virtuosas, à veneração e ao temor; deste modo, respeita a separação do objecto e procura o seu bem. Estas considerações descrevem diferentes experiências, podendo ambas ser reais (como Platão, ao contrário de Espinosa, reconheceu).
O amor não é apenas uma emoção: pode também ser um tipo de relação. Aristóteles, na Ética a Nicómaco, insistiu que o amor (da amizade) implica sempre conhecimento mútuo e benevolência recíproca. Embora qualquer descrição do amor necessite de abrir caminho para amores que não são correspondidos, ou que são dirigidos para objectos que não podem retribuir (como bebés ou alguns animais) ou que não podem fazê-lo tão claramente (como Deus), a insistência de Aristóteles na interacção e na reciprocidade fornece um ingrediente importante para uma descrição normativa de muitos tipos de amor humano, quer da amizade quer romântico-erótico. Com efeito, a recusa em conceber o amor em termos relacionais é uma deficiência central em muitos casos de amor erótico, nos quais o objecto amado é, de facto, tratado como um objecto a ser possuído e imobilizado. Embora Proust pensasse que tais desígnios eram essenciais ao amor erótico, pode-se duvidar disto.
Alguns amores podem não envolver, de modo algum, uma emoção forte. Kant (1797) insistiu que o "amor patológico" (amor que envolve uma emoção passiva) era inferior ao "amor prático", uma ligação activa ao bem dos outros, incluindo emoções de respeito e preocupação. Quer concordemos quer não, devíamos reconhecer que este comprometimento prático activo é um tipo de amor: o amor filantrópico, por exemplo, pode ser melhor entendido desta forma. Os estóicos gregos acreditavam que mesmo o amor erótico podia ser repensado de uma forma que o tornasse compatível com a apatheia, impassibilidade, própria dos doutos. Seria um entusiasmo activo acerca do bem-estar do objecto, sem as correntes da passividade angustiante que habitualmente caracteriza a ligação erótica.
2. Tipos de amor
O inglês, como o latim, tem apenas um único vocábulo para uma extensa família de experiências diferentes. Outras línguas, como o grego antigo e o japonês moderno, tornam as diferenças inequívocas desde o início através do uso de vocábulos diferentes. Mas, mesmo em inglês e latim, podemos distinguir diferentes espécies de amor. O amor erótico-romântico está estreitamente ligado ao desejo sexual, enquanto o amor da amizade aparentemente não está. Considera-se frequentemente na era moderna que o amor dos pais pelos filhos e dos filhos pelos pais tem uma dimensão erótica; mas esta não era a perspectiva da maioria das culturas mais primitivas, nem é verosímil ser verdadeira em culturas onde os pais em boa situação financeira raramente viam os seus filhos. A cultura grega antiga considerou que o eros era sexual, preocupado com a posse e potencialmente destrutivo; a philia, que podia prevalecer quer entre amigos quer entre parentes, era vista como mútua e recíproca, preocupada com o bem-estar, e uma força cultural positiva. A agape cristã é distinta de ambos estes amores pelo seu carácter essencialmente altruísta; o seu paradigma é a dádiva que Cristo fez da sua vida para a redenção da humanidade pecadora.
Podemos também classificar os amores pelo seu tipo de objecto. Nós amamos outras pessoas, e é razoável esperar que estes amores envolverão alguma reciprocidade e mutualidade. Os amores das pessoas pelos animais podem ser muito intensos; variam muito no tipo de reciprocidade que oferecem. As pessoas também amam intensamente objectos inanimados, como obras de arte e beleza natural. Tais amores não podem ser recíprocos. O amor também pode ter como objecto uma abstracção moral, como a justiça social ou o bem da humanidade. No modelo estóico-kantiano este tipo de amor é especialmente bem explicado, como algo que envolve um comprometimento activo mais do que uma emoção.
O amor de Deus ou dos deuses tem sido entendido de muitas formas diferentes. Os estóicos pensavam que amar Deus era amar o propósito racional que dá vida ao universo; tal amor era melhor entendido como uma forma de pensamento activo, sem qualquer receptividade emocional. O amor intellectualis dei, de Espinosa, segue este paradigma. Santo Agostinho, criticando a apatheia estóica, insistiu que uma forma de amor fortemente emocional, misturado com temor, culpa e dor, é mais apropriado a uma vida cristã. Muitos pensadores cristãos seguem a sua influência. As concepções judaicas do amor de Deus tendem a dar ênfase à acção correcta, quer ritual quer ética. O moderno pensamento religioso continua estes debates.
3. Diferença cultural
A maioria das sociedades abrange tipos e concepções de amor muito diferentes. Mas as diferenças multiculturais também complicam a análise. As sociedades diferem a) no comportamento que consideram adequado numa relação de amor; assim, os amantes americanos modernos comportam-se publicamente de formas que teriam sido inconcebíveis na Índia do séc. XIX. A diferença também está presente b) nas regras que as sociedades ensinam a respeito dos objectos de amor adequados; assim, a Atenas do séc. V a. C. ensinava aos homens jovens que se esperava que eles tivessem fortes desejos eróticos quer por homens quer por mulheres; muitas culturas modernas não transmitem esta ideia. As sociedades também diferem c) nas suas avaliações normativas das diferentes espécies do amor em si - discordando, por exemplo, sobre se o amor erótico é nobre ou indecoroso, bom ou mau. Pode-se esperar que todas estas diferenças moldem não somente os conceitos mas também a própria experiência do amor.
De uma forma mais interessante, as sociedades também diferem d) na taxinomia exacta dos tipos de amor que a sua linguagem e forma de vida exibem e perpetuam. Por exemplo, o grego antigo eros é imaginado como um terrível poder que domina a personalidade e faz que ela se fixe num objecto com uma intensidade irresistível. O seu objectivo é supostamente a posse do objecto. O amor palaciano medieval, em contraste, põe a ênfase na pureza ideal e afastamento do seu objecto e associa o amor a uma terna e cortês atenção para com esse objecto. Aqueles que, hoje em dia, perderam as crenças e as formas de vida que fundamentaram o amor palaciano não podem ter experiência daquela paixão exactamente.
As diferenças na taxinomia são muitas vezes descobertas e depois modeladas pela terminologia. Assim, o facto de os gregos antigos distinguirem o eros da philia e os romanos usarem apenas o vocábulo amor provavelmente moldou o pensamento e a experiência pelo menos até determinado ponto, embora os romanos distinguissem claramente diferentes variedades de amor (analogamente no mundo moderno, o facto de o japonês ter várias palavras distintas para aquilo que o inglês chama "amor" provavelmente revela alguma diferença real na experiência, ainda que estas diferenças não devam ser sobrestimadas). No mundo moderno, o entendimento da diferença cultural é dificultado pelo contacto intercultural e pela tradução de textos formativos: assim, o facto de o japonês ai ser usado para traduzir o bíblico agape exprime, sem dúvida, a evolução daquele conceito enquanto aplicado à experiência.
4. Amor e desenvolvimento humano
As pessoas começam a ter emoções fortes antes de poderem mover-se ou falar. A combinação da maturidade cognitiva com o desamparo físico de um bebé humano dá origem a uma complexa e ambivalente vida emocional, à medida que vê que muitos objectos de que necessita para conforto e sobrevivência são também distintos e insubmissos. A perspicaz conjectura de Espinosa acerca da relação entre amor e cólera tem, presentemente, recebido muitas vezes confirmação clínica e experimental. Uma tarefa do desenvolvimento humano é gerir e até mesmo superar esta ambivalência, a qual existirá em muitas formas diferentes em diferentes vidas, à medida que o amor é poderosamente moldado pela identidade individual dos objectos de afecto precoces.
As experiências precoces que moldam o padrão dos amores de uma pessoa são imperfeitamente recordadas, se o são de todo; mesmo traduzi-las para palavras é modificá-las. E, não obstante, parece provável que elas ensombram as experiências mais tardias de uma pessoa. Proust alvitrou de forma plausível que quando um adulto abraça um amante, ele ou ela estão, ao mesmo tempo, a abraçar a sombra de um objecto mais primitivo. Deste modo, Albertine é também a mãe cujo beijo de boa noite o rapazinho tão ansiosamente esperou. E, contudo, é difícil compreender estas facetas de si mesmo; e na medida em que se consegue fazê-lo, altera o passado tornando-o preciso e articulado. Portanto, é provável que o autoconhecimento das pessoas no amor seja muito imperfeito.
5. Amor e bem humano: a elevação do amor
O amor é geralmente reconhecido como uma fonte de beleza e apreço na vida. Por esta razão, nenhum filósofo propôs a sua completa remoção. Mas considera-se também que acarreta várias dificuldades para a pessoa que aspira a uma vida recta e virtuosa. Uma preocupação é que o amor implica parcialidade: concentrando-se intensamente no apreço de um único objecto, a pessoa perde de vista as afirmações legítimas de outros objectos e metas. A segunda preocupação é com a excessiva indigência: permitindo a um único objecto tornar-se central para a sua vida, os amantes colocam-se a si próprios à mercê de acontecimentos que não podem controlar, sacrificando, deste modo, a sua dignidade e poder. Finalmente, em parte por causa desta passividade, o amor está muitas vezes ligado à raiva e vingança, quer contra o objecto amado quer contra um rival, ou ambos. Uma sociedade que quer reduzir a raiva e a violência pode ter, portanto, razões para desencorajar o amor.
Os filósofos na tradição ocidental têm, por conseguinte, estado preocupados com o projecto de construir uma reforma ou "elevação" do amor que nos permitiria conservar o seu mistério e beleza embora depurando os seus excessos deformadores. Para Diotima, no Banquete de Platão, a elevação implica centralmente a ideia de um objecto abstracto. Desde que alguém perceba que o objecto real do seu amor não é um corpo nem mesmo uma pessoa completa, mas a beleza que está alojada naquele corpo ou pessoa, então esse alguém pode começar um processo de reforma, comparado à subida de uma escada, através do qual, afinal, chega a amar toda a beleza no universo e, mais do que isso, a contemplar a forma imortal da própria beleza em toda a sua harmonia. Desta forma, os amantes tornam-se invulneráveis às vicissitudes da vida: o objecto do seu amor nunca os trairá ou desapontará.
Os proponentes cristãos da "escada" do amor tendem a criticar o plano de Platão pelo seu objectivo de auto-suficiência pessoal. A modéstia genuína exige que se mantenha uma constante consciência da própria imperfeição e miséria. Os autores cristãos também se esforçam por manter o amor de indivíduos específicos como parte do amor purificado.
Espinosa regressou à proposta platónica para a reforma contemplativa do amor: concentrando-se na independência da mente de contingências externas, em última instância uma pessoa vem a amar a estrutura determinista do universo inteiro e a mente é libertada da passividade e ambivalência que caracterizam os afectos humanos.
Uma notável interpretação moderna da tradição platónica pode ser encontrada em À la Recherche du Temps Perdu (À Procura do Tempo Perdido) (1914-27), de Proust, que afirma que cada um dos amores de um escritor é como um degrau numa escada que o conduz a formas superiores, nas quais, sozinho, o seu intelecto encontra conforto e deleite. Usando o próprio passado de dor e vulnerabilidade como matéria-prima para um trabalho criativo, supera-se a vulnerabilidade e alcança-se uma espécie de independência do tempo e da morte.
Nenhum destes reformadores gosta muito dos seres humanos reais. Por essa razão, esta tradição dá origem a uma contratradição que tenta restituir aos seres humanos uma grande aceitação dos seus amores como eles são, vendo o próprio interesse na elevação como uma doença que necessita de cura. Muita desta tradição subsiste fora da filosofia. Um exemplo extraordinário é o Ulisses (1922), de Joyce, que divertidamente vira de pernas para o ar a escada de Diotima, sugerindo que é somente na emoção inconstante e imperfeita que o amor verdadeiro pode ser encontrado. Ao conectar o idealismo religioso ao anti-semitismo e o amor pelo corpo, de Bloom, a um amor filantrópico geral, Joyce sugere, também, que a tradição de elevação pode ser a causa dos ódios sociais, em vez de a sua cura.
Martha Nussbaum
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